Congresso: Processos do Coletivo ERER+

Palestra: Processos do Coletivo ERER+.
Local: Auditório da Faculdade Anhanguera, Osasco.
Data: 19 de Outubro de 2019.
Sobre: Apresentação dos processos que rondam a criação e formação do Coletivo ERER+ com base no que venho chamando de Pedagogia do Esquisito. A palestra aconteceu durante o I Congresso Pluralidades na Escola Pública - Diretoria de Ensino de Osasco. 


Discurso que acompanhou a apresentação:

Osasco, 14 de Outubro de 2018.
Discurso para o I Congresso De Pluralidades na Escola Pública da Diretoria de Osasco
Artigo 26.1. Todo ser humano tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A instrução elementar será obrigatória. A instrução técnico-profissional será acessível a todos, bem como a instrução superior, esta baseada no mérito.
2. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos do ser humano e pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz.
Declaração Universal dos Direitos Humanos – 1948

Artigo 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
Constituição da República Federativa do Brasil – 1988

Artigo  68. O desenvolvimento de escolas inclusivas como o modo mais efetivo de atingir a educação para todos deve ser reconhecido como uma política governamental chave e dado o devido privilégio na pauta de desenvolvimento da nação.”
Declaração de Salamanca – 1994

Há uma parte não dita ainda e que precisa estar presente aqui, porque é parte indissociável desse processo. Eu estudei na escola Américo Marco Antonio da primeira série até o antigo terceiro colegial. Durante o ensino médio eu não tive uma experiência positiva naquele espaço. Fui vítima de bullying por não corresponder as expectativas normativas e compulsórias de sexualidade, identidade de gênero e estética. Em dado momento em que eu não conseguia mais saber quais seriam os desdobramentos da violência simbólica que eu estava sofrendo, busquei ajuda na gestão da época e obtive como retorno que eu precisava mudar para não sofrer violência naquele espaço. Ora, colocaram sobre os meus ombros a culpa da violência que eu estava sofrendo. Eu quis parar de estudar e se não fosse por minha família eu de fato teria parado e não estaria aqui hoje.
Ter retornado para o Américo como profissional da educação criou também responsabilidades para além da sala de aula regular. Retornar traz de modo inseparável a obrigação moral de trabalhar para que nenhuma criança mais passe dentro da escola por nenhum tipo de violência que destrua sua autoestima, seus sonhos e a sua vontade de viver. Essa é a minha obrigação moral e eu não mereço nenhum tipo de condecoração, louro, troféu ou biscoito. É o meu dever moral.
Quando me convidaram para trabalhar com a interlocução do ERER eu não sabia o que me esperava, além, obviamente, de ter dentro de mim a consciência do meu papel, da minha responsabilidade e do meu retorno.  Foi um desafio.
Quando comecei a desenhar o plano de ação não tinha a menor noção do que seria de fato passar por essa vivência. A vivência de ir juntando muitas peças, muitas histórias, muitas experiências e muitos sonhos e, com a somatória de todas as partes, criar um grande monstro. E eu amo os monstros.
Quando comecei a observar o que tinha sido desenhado e o que estava ganhando vida diante de mim, imaginei que muitas pedradas fossem surgir no meio do caminho, considerando o nosso atual contexto político e social. Passou o primeiro mês e nenhuma pedrada. Passou o segundo, o terceiro, o quarto… Nenhuma pedrada. Aqui estou eu, quase oito meses depois e nenhuma pedrada ainda. Mas eu sei que em algum momento elas virão. E eu não tenho medo mais. As pedras podem me ferir mas não apagam mais a história que escrevemos ao longo desses meses, as emoções que vivemos, as experiências que compartilhamos e as transformações – que como furacões e tornados – reviraram tudo aquilo que sou, tudo aquilo que somos enquanto coletivo.
Quando eu olho nos olhos das crianças do Coletivo ERER+ eu vejo esperança. Quando eu ouço suas risadas e gargalhadas eu sinto o terremoto poderoso que já são essas pessoas e que serão ainda mais no futuro. Quando eu ouço alguma das pessoas do coletivo me contarem sobre seus projetos, planos e sonhos, vibro, ainda somos capazes de sonhar. Quando eu vejo as nossas fotos, como enquanto eu estava organizando o material para o Congresso, eu sinto toda força e potência que temos: somos um grande vulcão em erupção. Somos a força da natureza.
Os últimos dias não estão sendo fáceis, muito pelo contrário, estão sendo fascistas. O futuro do nosso coletivo é incerto. O futuro da educação pública é incerto, a democracia é incerta, a minha vida é incerta e a vida das pessoas que eu amo também.
“Kit gay”, “ideologia de gênero”, “escola sem partido” são invenções de grupos fascistas para colocar em prática o extermínio de pessoas como eu. E se hoje estamos em um Congresso de Pluralidades e que no meu entendimento, está para além da educação, a gente precisar falar sobre isso. Precisa falar que os EUA já experimentou em sua história na década de 70 a demissão de professores gays por serem considerados recrutadores e abusadores de crianças. E que hoje, 2018, a relação homossexual é crime em 71 países, sendo que 7 deles a punição é a morte. O nosso país, que muito embora não criminalize as identidades LGBT, é um dos que mais mata essa população em comparação com o resto do mundo, inclusive comparando com aqueles 7, onde a nossa morte está institucionalizada. Identidades essas, que nesse momento da história, têm sofrido cruelmente com constantes ataques físicos, psicológicos e simbólicos e que deixam uma mensagem clara, nesse sistema de necropolítica, nossos corpos não importam e não merecem nem ao menos serem chorados.
Lutamos por anos por uma educação libertadora, inclusiva, acessível e humana e hoje caminhamos para o avesso disso tudo. Lutamos por anos pela liberdade e hoje gritamos pelo seu contrário. Eu, particularmente, lutei bravamente para não sucumbir dentro dessa sociedade, para conseguir estudar, trabalhar, me formar – sou a primeira pessoa da minha família a ter curso superior – e chegar até aqui enquanto profissional da educação pública em efetivo exercício. Estar nessa posição hoje não é uma vitória só minha, mas de uma multidão de corpos estranhos, latinos, bichas, periféricos, monstruosos, não normativos, não binários, desviados, desviantes, anormais e, orgulhosamente, esquisitos.  E eu não tenho o direito, o privilégio e nem tempo para desfrutar do sabor de ter chegado até aqui, o sabor dessa conquista, porque as regras estão sendo mudadas, e agora, não só a minha presença está ameaçada, como a minha vida em si.
Para os Guarani-Kaiowá, palavra é “palavra que age”, que consigamos agir e reagir nesse momento de tamanha obscuridade e incertezas. E ainda que o ódio vença nesse momento, não nos esqueçamos que somente o amor nos salvará. O amor é a resposta, não importa qual seja a questão. Triunfo dos nossos corações.
Se ferir a nossa existência, sejamos resistência!
Viva a escola pública! Viva a diversidade! Viva a pluralidade!
Ele nunca!
T. Angel



Fotos: Daniel Sousa







Participação no  I Congresso Pluralidades na Escola Pública - Diretoria de Ensino de Osasco.